16
Novembro
2016
Estados Unidos em vias de regressão
Do sonho de Martin Luther King ao pesadelo de Donald Trump
En Montevideo, Raúl Zibechi *
Imagem: Bonil-Cartonclub
Era 28 de agosto de 1963, quando Martin Luther King pronunciou seu célebre discurso diante de mais de 200 mil pessoas em Washington: “Sonho que um dia os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de escravos possam se sentar juntos à mesa da irmandade”. Foi o ponto mais alto na luta pelos direitos civis, e o discurso tocou forte na alma e no corpo de milhões de norte-americanos. A vitória de Donald Trump supõe um retrocesso de meio século.El 28 de agosto de 1963 Martin Luther King pronunciaba su célebre discurso ante más de 200 mil personas en Washington: “Sueño que un día los hijos de los antiguos esclavos y los hijos de los antiguos dueños de esclavos, se puedan sentar juntos a la mesa de la hermandad”. Fue el punto más alto en la lucha por los derechos civiles, y el discurso resonó muy fuerte en el alma y en el cuerpo de millones de estadounidenses. La victoria de Donald Trump supone un retroceso de medio siglo.
Eram anos muito duros, nos quais a discriminação racial – um nome muito suave para a violência genocida contra os negros – era o pão de cada dia, desde proibir os afro-americanos de entrar em locais públicos até crimes como os cometidos pela extrema direita nos estados do Sul.
Apesar da repressão policial e estatal, e da hostilidade de uma parte dos brancos (Martin Luther King foi assassinado em 1968 e vários dirigentes do partido dos Panteras Negras foram mortos pelo FBI), a população negra se manteve de pé, resistindo e lutando pelos seus direitos.
As dificuldades nunca impediram os que vinham de baixo, os que suportavam, ombro a ombro, entoando cânticos para afugentar os medos, e que faziam da solidariedade – ou melhor, da irmandade – com quem sofre, a razão de suas vidas. Não sofriam sozinhos, que é uma forma muito maior de dor.
Como passamos daqueles anos, nos quais os jovens e muitos trabalhadores sindicalizados lutavam contra a guerra do Vietnam, as mulheres começavam a lutar pelos seus direitos e os negros desmantelavam as leis de segregação racial, para cairmos no pesadelo machista, racista e xenófobo encarnado em Trump? Como e quando nos perdemos? Se o “trumpismo” chegou ao poder é porque, antes, já tínhamos nos perdido.
A primeira coisa é reconhecer que nasceu uma nova direita, militante, com amplo apoio popular e de massas.
Uma direita que não oculta seus objetivos: voltar atrás no relógio da história, em todos os sentidos. Recuperar a grandeza dos Estados Unidos; devolver o poder absoluto aos brancos; reduzir as mulheres ao espaço doméstico.
Esta nova direita não é exclusiva dos Estados Unidos. No Brasil o Movimento Brasil Livre (MBL) mobilizou milhões nas ruas para destituir a presidenta Dilma Rousseff por supostos crimes de responsabilidade.
Apesar da repressão policial e estatal, e da hostilidade de uma parte dos brancos (Martin Luther King foi assassinado em 1968 e vários dirigentes do partido dos Panteras Negras foram mortos pelo FBI), a população negra se manteve de pé, resistindo e lutando pelos seus direitos.
As dificuldades nunca impediram os que vinham de baixo, os que suportavam, ombro a ombro, entoando cânticos para afugentar os medos, e que faziam da solidariedade – ou melhor, da irmandade – com quem sofre, a razão de suas vidas. Não sofriam sozinhos, que é uma forma muito maior de dor.
Como passamos daqueles anos, nos quais os jovens e muitos trabalhadores sindicalizados lutavam contra a guerra do Vietnam, as mulheres começavam a lutar pelos seus direitos e os negros desmantelavam as leis de segregação racial, para cairmos no pesadelo machista, racista e xenófobo encarnado em Trump? Como e quando nos perdemos? Se o “trumpismo” chegou ao poder é porque, antes, já tínhamos nos perdido.
A primeira coisa é reconhecer que nasceu uma nova direita, militante, com amplo apoio popular e de massas.
Uma direita que não oculta seus objetivos: voltar atrás no relógio da história, em todos os sentidos. Recuperar a grandeza dos Estados Unidos; devolver o poder absoluto aos brancos; reduzir as mulheres ao espaço doméstico.
Esta nova direita não é exclusiva dos Estados Unidos. No Brasil o Movimento Brasil Livre (MBL) mobilizou milhões nas ruas para destituir a presidenta Dilma Rousseff por supostos crimes de responsabilidade.
Na América Latina
Uma nova direita religiosa
No dia seguinte ao impeachment, o MBL abandonou as ruas, ainda que os atuais governantes, do presidente a vários ministros, estejam sendo investigados por corrupção.
Agora, os militantes do MBL vão até as portas dos colégios ocupados (uns mil em todo o país) para pressionarem os estudantes e forçá-los a deixarem os colégios. Também se instalaram durante horas, com cartazes, rezando o pai nosso e cantando o hino nacional.
A nova direita brasileira é profundamente religiosa, mas bem distante dos preceitos éticos da teologia da libertação, assumindo agora o individualismo das igrejas pentecostais, que promovem entre os pobres os valores empresariais para saírem da pobreza.
O prefeito eleito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, membro do Partido Republicano e da Igreja Universal, não teve nenhum problema em se aliar ao narcotráfico no segundo turno eleitoral para assim derrotar o socialista Marcelo Freixo.
As igrejas evangélicas e pentecostais ocupam um papel relevante no Brasil, além de contarem com importantes meios de comunicação e partidos políticos de direita. Isso também está acontecendo na Colômbia, onde apoiaram o “NÃO” ao processo de paz junto com o ex-presidente Álvaro Uribe. Os evangélicos estão se convertendo em uma força política conservadora presente em todo o continente.
O segundo ponto é o fato de esta nova direita ter crescido graças aos desastres da globalização, que empobreceu milhões de trabalhadores com o deslocamento das indústrias.
E cresceu, ainda mais, com a crise de 2008, que deixou um rastro de pobreza e de injustiças sociais, enquanto os ricos ficavam mais ricos.
Estas são as causas profundas da raiva acumulada entre as famílias que não puderam continuar pagando hipotecas, perderam suas poupanças, e veem como seus filhos terão um desempenho de vida inferior ao dos seus pais e que perderam a esperança em um futuro melhor.
Neste sentido, a alternativa contra Trump não podia ser Hillary Clinton, financiada pelo 1 por cento de ricos, amiga de Wall Street e da grande banca, questionada por corrupção até pelo FBI, geradora do desastre da invasão à Líbia, destruindo o país e levando a população a situações limite.
Agora, os militantes do MBL vão até as portas dos colégios ocupados (uns mil em todo o país) para pressionarem os estudantes e forçá-los a deixarem os colégios. Também se instalaram durante horas, com cartazes, rezando o pai nosso e cantando o hino nacional.
A nova direita brasileira é profundamente religiosa, mas bem distante dos preceitos éticos da teologia da libertação, assumindo agora o individualismo das igrejas pentecostais, que promovem entre os pobres os valores empresariais para saírem da pobreza.
O prefeito eleito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, membro do Partido Republicano e da Igreja Universal, não teve nenhum problema em se aliar ao narcotráfico no segundo turno eleitoral para assim derrotar o socialista Marcelo Freixo.
As igrejas evangélicas e pentecostais ocupam um papel relevante no Brasil, além de contarem com importantes meios de comunicação e partidos políticos de direita. Isso também está acontecendo na Colômbia, onde apoiaram o “NÃO” ao processo de paz junto com o ex-presidente Álvaro Uribe. Os evangélicos estão se convertendo em uma força política conservadora presente em todo o continente.
O segundo ponto é o fato de esta nova direita ter crescido graças aos desastres da globalização, que empobreceu milhões de trabalhadores com o deslocamento das indústrias.
E cresceu, ainda mais, com a crise de 2008, que deixou um rastro de pobreza e de injustiças sociais, enquanto os ricos ficavam mais ricos.
Estas são as causas profundas da raiva acumulada entre as famílias que não puderam continuar pagando hipotecas, perderam suas poupanças, e veem como seus filhos terão um desempenho de vida inferior ao dos seus pais e que perderam a esperança em um futuro melhor.
Neste sentido, a alternativa contra Trump não podia ser Hillary Clinton, financiada pelo 1 por cento de ricos, amiga de Wall Street e da grande banca, questionada por corrupção até pelo FBI, geradora do desastre da invasão à Líbia, destruindo o país e levando a população a situações limite.
O voto em Trump vem de baixo
“Recuperar o que fomos”
Clinton é uma das principais responsáveis pelo triunfo de Trump.
Entretanto, para que a nova direita fosse capaz de atrair os que se sentem vítimas das elites e de converter um punhado deles em militantes, precisou da cooptação de muitos dirigentes dos movimentos populares.
Estes deixaram de se organizar e de se mobilizar para dedicarem, de forma intensa, os seus maiores esforços para irem de porta em porta atrás das instituições estatais e das ONG.
Se as direitas tiram partido da raiva legítima acumulada durante décadas, é porque as esquerdas não estão à altura dos desafios atuais.
Justo neste momento, quando se torna mais necessário o ativismo organizado, dos sindicatos dos trabalhadores às coletividades rurais, dos grupos de mulheres aos jovens rebeldes.
Sem recuperar os conceitos de militância e de organização, os setores populares não seguirão em frente contra uma direita diferente, mas que, entretanto, bebe nas fontes das ultradireitas dos anos 30.
“O que acontece agora é uma reminiscência do que aconteceu em 1930”, assinalou Noam Chomsky em uma reflexão sobre a vitória de Trump.
Em terceiro lugar, devemos considerar o fato de “termos nos perdido de nós mesmos”. Esta é uma questão cultural e de classe.
Recuperar o que fomos e que nunca devíamos ter deixado de ser: pessoas simples, que fazem da amizade e da solidariedade os valores que iluminam as nossas vidas, e sob os quais crescem os nossos filhos.
Isso não tem nada a ver com moralismos. É puro pragmatismo: nenhum oportunista – como Trump, Mauricio Macri e os Le Pen – vai nos salvar quando chegarem os momentos difíceis. Só a mão dos companheiros e das companheiras.
Entretanto, para que a nova direita fosse capaz de atrair os que se sentem vítimas das elites e de converter um punhado deles em militantes, precisou da cooptação de muitos dirigentes dos movimentos populares.
Estes deixaram de se organizar e de se mobilizar para dedicarem, de forma intensa, os seus maiores esforços para irem de porta em porta atrás das instituições estatais e das ONG.
Se as direitas tiram partido da raiva legítima acumulada durante décadas, é porque as esquerdas não estão à altura dos desafios atuais.
Justo neste momento, quando se torna mais necessário o ativismo organizado, dos sindicatos dos trabalhadores às coletividades rurais, dos grupos de mulheres aos jovens rebeldes.
Sem recuperar os conceitos de militância e de organização, os setores populares não seguirão em frente contra uma direita diferente, mas que, entretanto, bebe nas fontes das ultradireitas dos anos 30.
“O que acontece agora é uma reminiscência do que aconteceu em 1930”, assinalou Noam Chomsky em uma reflexão sobre a vitória de Trump.
Em terceiro lugar, devemos considerar o fato de “termos nos perdido de nós mesmos”. Esta é uma questão cultural e de classe.
Recuperar o que fomos e que nunca devíamos ter deixado de ser: pessoas simples, que fazem da amizade e da solidariedade os valores que iluminam as nossas vidas, e sob os quais crescem os nossos filhos.
Isso não tem nada a ver com moralismos. É puro pragmatismo: nenhum oportunista – como Trump, Mauricio Macri e os Le Pen – vai nos salvar quando chegarem os momentos difíceis. Só a mão dos companheiros e das companheiras.
*Especial para Rel-UITA
Tradução por Luciana Gaffrée