09
Agosto
2017

Brasil feroz

En Brasilia, Gerardo Iglesias
20170809 Gilberto Vieira 960x600

Foto: Gerardo Iglesias 

O estado dos povos indígenas no contexto do Brasil atual, com a destruição dos direitos trabalhistas, o avanço do agronegócio e a escassa reação da população, são o centro desta entrevista com um referente muito dinâmico e comprometido com a luta e objetivos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
-Você já havia vivido uma situação como essa que o Brasil atravessa hoje?
-Não. Tenho 46 anos, portanto tinha apenas uma leve noção de alguma coisa no final da última ditadura. A conjuntura que estamos vivendo hoje, este retrocesso de direitos em todas as áreas, saúde, educação, para mim é algo novo.

A velocidade com que a jovem Constituição brasileira vem sendo desmantelada dá medo.

Na Constituição de 1988 foram consagrados os direitos trabalhistas fundamentais e, em menos de 30 anos, já estão sendo dinamitados. Imaginem quando se trata dos direitos dos povos e comunidades originárias. Aí a situação é ainda pior.

-Por que a população está tão ausente?
-Acredito que se deve ao estupor após receberem tantos golpes juntos. A vertigem com que o Congresso Nacional e seus aliados vêm arrasando o Brasil, com reformas e medidas que favorecem os interesses do capital, é tanta que as pessoas estão em choque e ainda não perceberam tudo o que vão perder.

Existe a possibilidade de que os brasileiros e brasileiras não possam se aposentar, que não tenham um acesso mínimo à saúde e à educação, e que o sistema público de educação universitária sofra cortes. E não há uma reação.

O combate se transferiu para as redes sociais e aí ficou, no espaço virtual. Isso é extremamente angustiante.

-A situação dos povos indígenas do Brasil traz consigo a violação de direitos humanos, massacres e uma classe política antagônica. E com este novo cenário?
-Tende a se aprofundar. Os povos originários já vinham sofrendo uma forte pressão dos setores vinculados ao agronegócio, por não respeitarem a demarcação das terras e por invadirem violentamente os territórios dos povos indígenas.

Em Mato Grosso do Sul, os guarani e os terena foram brutalmente atacados ao tentarem retomar suas terras. Só em 2016 houve mais de 30 ataques violentos contra acampamentos indígenas.

Isto acontece porque o governo assinou acordos com a bancada ruralista, entre eles um que estabelece um limite no tempo segundo o qual os povos indígenas só teriam direito às terras que possuíam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

No dia 16 de agosto, serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal três territórios indígenas e isso pode gerar um precedente muito perigoso. Tudo isso propicia um clima de enfrentamentos e um nível de violência desproporcional contra as comunidades indígenas.

Uma violência multiforme
Os indígenas cada vez mais expostos
Este ano, um ataque ao povo gamela no Maranhão mostrou uma sanha fora do comum. Houve indígenas que tiveram suas mãos cortadas, dezenas feridos com machetes e tiros, algo que remete aos relatos de Fray Bartolomé de las Casas em Ataque dos bandeirantes.

A violência se mostra de várias formas. Existe uma exercida pelos capangas, mas também há outra, onde as próprias pessoas são incentivadas a atacar os povos indígenas, como aconteceu no Maranhão.

E também surge uma violência originada no seio do sistema político, que se traduz no desmantelamento dos direitos, e que sem dúvida intensificará os ataques e a impunidade.

Esta marcação no tempo proposta, tanto pelo Executivo como pelo Legislativo, é um absurdo inconstitucional: exclui todas aquelas comunidades que não ocupavam suas terras até a referida data, quando em realidade não estavam nelas por terem sido expulsos com a mesma violência com que são atacados atualmente.

Em Rondônia estão acontecendo ataques sistemáticos contra os trabalhadores rurais, camponeses, líderes sindicais, líderes indígenas, para expulsá-los de seus territórios já demarcados e voltarem a loteá-los.

Tudo isso debaixo do nariz da justiça, do governo e da Fundação do Índio (Funai), que também está sendo desmantelada.

No Cimi temos um grupo que trabalha com indígenas isolados, por volta de uma centena. Desde que este governo assumiu, toda essa estrutura se viu afetada, e foi retirada a proteção às comunidades indígenas para que o agronegócio possa se expandir livremente.

-Você acredita que a sociedade brasileira está conscientizada desta vulnerabilidade dos povos originários?
-Por um lado, acredito que aumentou a sensibilidade popular diante da causa indígena. Grupos de artistas e organizações da sociedade civil têm se mostrado favoráveis à proteção dos povos nativos.

Entretanto, nas regiões de conflito pela terra ocorre um fenômeno de criminalização das lideranças indígenas, com o apoio dos grandes meios de comunicação, que perpetuam o discurso anti-indigenista e vinculam os povos originários com a ideia de “atraso”, como é o caso da TV Bandeirantes.

Tudo isto gera uma animosidade contra os indígenas e uma violência desmedida.

-Para o agronegócio, florestas e indígenas são um estorvo...
-Exatamente. É o que eu chamo de agrocefalia, um neologismo que utilizo para descrever a incapacidade daqueles que estão vinculados ao agronegócio de professar qualquer sentimento nobre pela natureza ou por tudo aquilo que esteja vinculado a ela, um tipo de incapacidade genética.

Os interesses deste setor estão vinculados à exploração dos recursos naturais, da água, dos solos, onde só o lucro interessa. Daí a aversão aos indígenas e aos quilombolas.

Por outro lado, está surgindo uma nova e forte articulação entre os povos indígenas, e este é o sinal de que poderemos resistir.

Desde 2012, há uma intensificação dos protestos pelos direitos, e os povos indígenas participam, vindo até Brasília para se manifestar.

-Isto também propiciou a intensificação da repressão?
-Com certeza. Principalmente aqui em Brasília. Na 14 edição do Movimento Terra Livre, reunindo mais de 4 mil indígenas em uma manifestação simbólica diante do Congresso, a repressão foi brutal.

Também impediram as pessoas de entrarem no Congresso para acompanharem a votação da PEC 215, que afeta os povos indígenas. Isso quando Eduardo Cunha ainda estava na presidência da Câmara dos Deputados.

Há um círculo de violência: ação do agronegócio, reação dos povos indígenas e contrarreação das forças públicas.

A natureza do capitalismo
Versus a natureza ameaçada de morte
-O Cimi norteia sua luta em linhas de ação, defendendo os povos, territórios e biomas diante da destruição sem limites do capitalismo...
-Sim, porque a premissa fundamental do capital é que tudo aquilo que possa ser transformado em lucro deverá assim ser, custe o que custar.

A água é um recurso natural fundamental para as populações indígenas, entretanto para o capital é apenas um recurso hidrelétrico ou um potencial de irrigação para as monoculturas. Pouco importa a eles o valor espiritual e sagrado dos rios para as comunidades.

Por outro lado, há um profundo distanciamento das populações urbanas com a realidade de onde provêm os recursos naturais como a água.

Existe uma grande desconexão com a natureza, ainda que muita gente queira viver em chácaras, longe das cidades.

Esta desconexão interfere negativamente na leitura que se pode fazer da exploração dos recursos naturais, e isso é o que as organizações como o Cimi querem combater.

Em Brasília, no início deste ano, já havia escassez hídrica. Imagine se não será importante preservar os conhecimentos indígenas e o respeito pelo ambiente e pelos recursos.

O agronegócio se expandiu de tal forma que já está havendo uma crise hídrica por causa dessa drenagem indiscriminada para a irrigação das monoculturas.

-E em vez de aprenderem a viver com a natureza, resolvem continuar destruindo...
-Pois é. Nós, que temos o privilégio de compartilhar a vida com as comunidades indígenas, podemos perceber que é possível viver de forma simples, mas a maioria da humanidade vai entrando na lógica do capitalismo, que leva você a pensar que precisa de um celular ou de um carro novo por ano.

Nas aldeias indígenas existe outra dinâmica, uma simplicidade cotidiana que permite a interrelação com a natureza e também com os avanços sociais, mas sem o caos das grandes urbes.

-Sabem que contam com a Rel-UITA nesta luta.
-Sabemos e valorizamos muito esta aliança, porque precisamos nos integrar mais regionalmente. A Rel-UITA é o nosso enlace primordial com a Pátria Grande.