11
Abril
2016
Brasil | Sociedad | POLÍTICA

A esquerda e a direita na crise brasileira

En Montevideo, Raúl Zibechi
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Foto: pt.forwallpaper.com

Raúl Zibechi, jornalista uruguaio, conhecedor profundo da situação política, econômica e social brasileira, apresenta para a Rel-UITA suas reflexões sobre a crise que tanto preocupa internamente, além dos impactos colaterais para toda a região. Sua análise – polêmica e provocadora – é um bom gatilho para tentarmos compreender a complexa conjuntura do país continente.
À primeira vista, não é fácil compreender as razões pelas quais a direita quer derrubar o governo de Dilma Rousseff. Os banqueiros estão obtendo as maiores rentabilidades de sua história. O agronegócio não só conseguiu converter o Brasil em um dos grandes exportadores de alimentos, como mantém no ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a sua mais importante representante, Kátia Abreu.

A indústria viveu tempos dourados enquanto o consumo interno se expandia e eram ampliados os horizontes de suas exportações, graças aos acordos comerciais com a Argentina.

É difícil compreender como é que dois atores tradicionalmente conservadores, como os banqueiros e o agronegócio, apostem na continuidade do governo, enquanto a indústria é a ponta de lança da destituição da Dilma.

De fato, Roberto Setúbal, presidente do Banco Itaú, garantiu que não há motivos para colocar fim ao governo atual. Já a Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) estabeleceu uma sólida aliança com o PSDB de Fernando Henrique Cardoso e com a classe média paulista, financiando boa parte das mobilizações, incluindo um breve acampamento na Avenida Paulista.

A FIESP desempenhou um papel destacado no golpe de Estado de 1964. Também apoiou o governo militar, financiando a repressão. Esta divisão das elites motivou um nada comum editorial do jornal brasileiro , o Folha de São Paulo, no dia 2 de abril, chamando “Nem Dilma nem Temer”. Interessante porque o jornal se diz contrário à destituição da Dilma, mesmo considerando que a presidenta “já não tem mais condições de governar o país”.

Dilma não está sendo acusada de corrupção, mas de ter provocado a maior recessão na história do Brasil. A leitura fina que a Folha faz, o que a diferencia do golpismo descarado dos outros grandes meios, como a Rede Globo e o Estado de São Paulo, é a compreensão de que “ainda desmoralizado, o PT tem o apoio de uma minoria importante”. Por isso, o jornal se mostra contrário à destituição da Dilma. “O impeachment certamente deixará um rastro de ressentimento”.

Para o jornal, a Dilma deveria renunciar, caminho que o vice-presidente Michel Temer do PMDB deveria seguir, e que a Câmara deve afastar esta “nefasta figura chamada Eduardo Cunha”, que jamais poderia ocupar um cargo, com a quantidade de processos por corrupção que pesam sobre seus ombros. 

A Folha sabe que a Dilma não vai renunciar, até porque a própria presidenta,em várias ocasiões, já advertiu que não o fará. O editorial não quer, então, convencê-la, mas alertar aos setores mais radicais, como a FIESP, que a destituição dela gerará uma situação ainda pior.

Por “ressentimento” deve-se entender, colocando os pingos nos “is”, que há uma agudização dos conflitos sociais, particularmente os racistas e classistas. Até agora,os conflitos sociais no país mais desigual do mundo foram muito contidos pelo aumento do nível de vida promovido pelos governos de Lula e Dilma.

Porém, agora, quando o racismo aumentou muito, bem como o ódio das classes médias contra os da classe baixa, tudo isso se intensifica, e é questão de tempo até que os habitantes das favelas e das gigantescas periferias urbanas ganhem as ruas, sendo este o maior temor das elites brasileiras.

Uma coisa assim vem acontecendo nos últimos anos, particularmente desde as jornadas de junho de 2013, quando milhões de brasileiros protestaram em 353 cidades do país, contra o aumento do transporte urbano e contra a repressão.

Naquela ocasião, os velhos movimentos não participaram (nem a CUT nem o MST), sendo manifestações protagonizadas por novos movimentos de base, juvenis, de mulheres e de negros  das periferias urbanas.

Ou seja, foram aqueles grupos sociais que, durante o lulismo, não haviam criado ainda nem movimentos nem organizações próprias. Novas siglas, como o Movimento Passe Livre (MPL), grupos feministas e afros, começaram a ser as referências mais importantes nesta nova realidade.

A velha esquerda, principalmente o PT e a CUT, aparecem defasadas, sem capacidade para compreender o novo. Bruno Torturra, criador do inovador Mídia Ninja, que transmitiu ao vivo os protestos de 2013 e que substituiu os grandes meios, relaciona a crise desta esquerda com sua crescente institucionalização.

“A esquerda já não consegue perceber os desafios atuais nem seduzir as pessoas. Ela precisa oferecer um novo horizonte emancipatório para o século XXI. No Brasil e na América Latina surge um enorme desafio: a esquerda se converteu no establishment nos últimos dez anos” (Público, 3 de abril de 2016).

O fato de estar no governo fragiliza ainda mais a esquerda, porque não consegue escapar das decepções que provoca e dos escândalos de corrupção que a rodeiam, ou mesmo, protagoniza.

O PT “se institucionalizou”
Abandonando o trabalho com sua base social
O sociólogo Rudá Ricci, que trabalhou durante décadas com os movimentos sociais e sindicais, complementa esta leitura. Em seu livro “Terra de Ninguém” (1999) o autor lembra que o trabalho de formação de militantes e de dirigentes foi essencial na construção dos novos movimentos rurais e urbanos, e do próprio PT, antes da onda de greves nas metalúrgicas, em 1979, que enterraram a ditadura.

Durante anos, os economicamente pobres e os politicamente marginalizados se encontravam nos encontros das comunidades eclesiais de base e das oposições sindicais.

O primeiro grande erro das esquerdas foi abandonar esse trabalho e focar sua ação quase exclusivamente no campo institucional”, disse Ricci em seu blog (21 de  março de 2016). Naquele período, os dirigentes não podiam tomar decisões sem consultar as múltiplas organizações de base.

Mas, a partir do sucesso eleitoral de 1989, quando Lula esteve a ponto de ganhar a presidência, “a direção do PT optou por desconsiderar as lições de uma década de organização popular de base”, lembra Ricci, “para entrar no mundo institucional”. O resto todo mundo já conhece. 

Já no governo, o lulismo bloqueou a criação de novas organizações de base e a formação de novas camadas de militantes. Como sabemos, por quase um século de experiências da esquerda no poder, a organização e a mobilização passam a ser vistas de soslaio, como um perigo latente que deve ser impedido, cooptando, negociando e integrando os novos rebeldes.

Encurralado pela polarização golpista, o PT volta a apelar para a mobilização massiva para defender a democracia. Essa mudança de atitude poderia ser o primeiro passo para gerar uma completa revisão dos últimos dez anos.

Não só seria politicamente adequado diante da grave situação vivida, não só no Brasil mas em todo o continente, como também um exemplo de ética, de que a humildade ainda não acabou, primeiro passo para se recuperar a histórica identidade das esquerdas.


Tradução: Luciana Gaffrée